A globalização não criou o modelo económico global que precisávamos

 A principal razão é que este sistema assenta no princípio base de que só o “Chefe” manda. Ora, logo se manda então só o “Chefe” pensa, só o “Chefe” sabe... e, pior ainda, só quando o “Chefe” está presente é que se decide! E aqui começam os problemas do mundo real...

Existe uma confusão generalizada, se não mesmo medo, sobre o estado da economia global. A guerra na Ucrânia, a subida dos preços do gás, a subida das taxas de juro, a continuação dos efeitos da pandemia e a perspetiva iminente de uma recessão - todos estes fatores parecem alinhar-se para provocar um cenário de caos global.

O medo é real. Mas o caos é transitório, uma vez que é em grande parte impulsionado pelo tumulto que assiste a qualquer transição de um modelo económico para um novo. Todas as economias passam por ciclos de expansão e contração, mas o indicador mais importante nestes ciclos tem menos a ver com os preços de mercado ou com as taxas de desemprego e mais com a filosofia política subjacente.

Durante cerca de meio século, a política económica global dominante baseou-se no conceito governativo do neoliberalismo - a ideia de que o capital, os bens e as pessoas devem poder atravessar fronteiras em busca dos rendimentos mais produtivos e rentáveis.

Muitas pessoas associam-na aos modelos agressivos praticados por Ronald Reagan e Margaret Thatcher ou mesmo às ideias económicas favoráveis aos empresários defendidas por Bill Clinton e Barack Obama em torno dos mercados financeiros e do comércio mundial. Mas as raízes desta filosofia vão mais longe.

O termo “neoliberalismo” foi criado em 1938, numa reunião em Paris de economistas, sociólogos, jornalistas e empresários que estavam alarmados com o que descreviam como sendo o controlo excessivo dos mercados após o período da Grande Depressão. Para eles, os interesses dos Estados centralizadores podiam colocar problemas à estabilidade económica e política.

Não se podendo confiar nos cidadãos que votavam, os interesses nacionais (ou, sobretudo, o nacionalismo) deveriam ser limitados pelas leis e instituições internacionais, de modo que os mercados e a sociedade em geral pudessem funcionar corretamente.

Instituições globais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial e organizações posteriores como a Organização Mundial do Comércio — grupos que se limitavam essencialmente a ligar o financiamento global, o comércio e as empresas além-fronteiras — foram influenciadas por estas filosofias neoliberais. Defenderam vigorosamente uma série de princípios económicos derivados das teorias da liberalização do mercado e da globalização sem restrições.

Estas receitas geraram mais crescimento do que nunca; os quatro anos que antecederam a crise financeira de 2008 foram um dos períodos de crescimento global mais fortes do último meio século. Mas também criaram quantidades substanciais de desigualdade e assimetrias sociais em muitos Países.

 

Como garantir que a globalização económica não volte a correr muito à frente da política nacional?

Como? - Em parte porque o dinheiro “viaja” além-fronteiras muito mais depressa do que os bens ou as pessoas. O acordo tácito de “capital barato para mão-de-obra barata” entre os Estados Unidos e a Ásia a partir da década de 1980 beneficiou as empresas multinacionais e o Estado chinês muito mais do que qualquer outra entidade.

A revolução Reagan-Thatcher desencadeou os fluxos de capital global ao desregulamentar a indústria financeira, e o comércio global foi totalmente liberalizado durante a era Clinton, com acordos como o NAFTA e a eventual adesão da China à OMC, que deu o equilíbrio dos interesses políticos entre a criação de emprego doméstico e a integração global do mercado em relação a este último.

Pedro Garlito

A equação mágica era simples... que os preços mais baixos dos bens importados da Ásia compensassem a perda de poder de compra e modestos ajustes salariais dos consumidores ocidentais.

Mas, infelizmente, não funcionou! Mesmo antes da pandemia e da guerra na Ucrânia, os preços dos bens e serviços que atingem a classe média - da habitação à educação e aos cuidados de saúde - estavam a aumentar muito mais depressa do que os salários. E continua a ser esse o caso, agravado agora por uma inflação descontrolada. A sensação de que a economia global se tornou demasiado desancorada dos interesses nacionais ajudou a alimentar o populismo político, o nacionalismo e até o fascismo que estamos hoje a enfrentar.

É uma ironia amarga que as próprias filosofias destinadas a atenuar o extremismo político fizeram precisamente o oposto quando levadas longe demais. A filosofia neoliberal é aproveita- da não só nos Estados Unidos, mas também na Europa — veja-se a reação na Grã-Bretanha à experimentação desastrada da primeira-ministra Liz Truss com desagravamento de impostos.

A deslocação para países mais baratos deveria tornar a produção mais produtiva e mais eficiente. Mas muitas dessas supostas eficiências entraram em colapso com eventos de stress global, desde pandemias a tsunamis, engarrafamentos portuários, crises energéticas, etc.

Felizmente, o pêndulo da economia política acabará por mudar de direção e os princípios que sobreviveram à sua utilidade darão lugar a novos. As alterações de paradigma socioeconómico são raras e transformadoras.

 

E como podemos corrigir as políticas de forma que não resultem no protecionismo ao estilo dos anos 30

Acredito que estamos a passar por uma destas mudanças. A economia global está a recompor-se — não ao “normal” dos modelos económicos neoliberais convencionais, mas a um novo normal. Há um repensar em círculos políticos, empresariais e académicos sobre qual deverá ser o equilíbrio certo entre o global e o local.

A política comercial está a mudar para melhores padrões laborais e ambientais, com um entendimento de que o barato nem sempre é barato se os produtos estão a degradar o ambiente ou a ser feitos com as mãos minúsculas de uma criança.

Há também um repensar no comércio de serviços digitais para assegurar a privacidade e os valores da liberdade. (Queremos mesmo os nossos dados pessoais entregues a grandes empresas tecnológicas ou a Estados de vigilância extrema como a China?).

As cadeias de abastecimento estão a encurtar não só por causa da geopolítica, mas também por causa de novas tecnologias (como a agricultura descentralizada e a impressão 3D) que estão a permitir a produção e o consumo mais próximos de casa.

E agora? Como podemos garantir que a globalização económica não volte a correr muito à frente da política nacional? E como podemos corrigir as políticas de forma que não resultem no protecionismo ao estilo dos anos 30, que tão maus resultados nos causaram?

Provavelmente ainda não temos uma nova teoria unificada para o mundo pós-neoliberalismo. Mas isso não significa que não possamos continuar a questionar as ideias passadas. Um dos mitos neoliberais mais persistentes era que o mundo era plano e os interesses nacionais seriam de menor relevância que os mercados globais. Os últimos anos deitaram por terra este conceito. Cabe agora a todos nós criar um sistema que equilibre melhor os interesses locais e globais.

 


Fonte: EXPANSÃO